Crônica de José Roberto Torero* – Adaptação de Marcello Pereira Borghí**

crônica 1930

Olá! Meu nome é John Langenus. Nasci em Berchem, na Bélgica, no distante ano de 1891. Quando eu era criança, adorava futebol, mas a bola não tinha nenhuma simpatia por mim. Batia-me na canela, fugia-me dos pés, acertava-me o nariz.

Resultado: Troquei a bola pelo apito. Virei juiz de jogos escolares. Chegava a fazer três partidas por domingo. E fui aprendendo os segredos da coisa. Mas não passei no meu primeiro teste para ser árbitro oficial. Os dois ingleses que me aplicaram a banca, juízes de juízes, me perguntaram:

– O que você deve fazer quando a bola bater num avião voando baixo?

Eu não soube responder e fui reprovado. Três meses depois fiz novamente a prova e me fizeram perguntas decentes. Aí passei.

Tive um único apito na vida. Custou-me trinta centavos. Levei-o comigo quando fui chamado para apitar as Olimpíadas de 1928 e a Copa do Mundo de 1930.

Nas Olimpíadas apitei apenas dois jogos. Uruguai 2×0 Holanda, pelas oitavas de final e a decisão do terceiro lugar que acabou Itália 11×3 Egito. Coitados dos egípcios, mas acho que eles um dia serão os pioneiros do continente africano numa Copa do Mundo, se esse torneio vingar.

Depois assisti a final entre Argentina x Uruguai. Precisaram de dois jogos pra decidir o campeão (1×1 e 2×1 para os uruguaios que começaram a chamar de Celeste Olímpica). Foram duas partidas de sair faísca. Nunca vi tamanha rivalidade. Se foi assim aqui na Europa, não quero nem imaginar quando se encontram jogando na América do Sul, mais perto de suas torcidas.

Mas vamos à primeira Copa.

A viagem – Peguei um trem de Antuérpia até Paris, depois outro até Barcelona e lá embarquei no Conte Verde, um navio luxuoso que também levaria as delegações da Romênia, da França, da Bélgica e da FIFA. O Jules Rimet, por sinal, não largava o troféu que entregaria ao país vencedor. Naquele tempo, a estatueta ainda se chamava Vitória.

Foram quatorze dias muito divertidos até o Rio de Janeiro. Cantamos, bebemos e rimos muito. Os romenos eram os mais animados. Até fizeram um número de balé.

Só era uma briga pra decidir os horários de treinos no convés. Todos tinham receio de serem espiados pelos prováveis adversários.

No Rio demos uma carona para a seleção do Brasil e para o Gilberto de Almeida Rego, que seria o juiz brasileiro daquela Copa. Ficamos muito amigos. Ele me chamava de João. Diferentemente do pessoal da FIFA que preferia me chamar de Jean, mas meus pais me deram um nome anglicano cristão. É John e pronto. Mas não consegui convencer nem a FIFA e nem o Gilberto. Bem, seguindo a viagem, quando paramos em Santos.

Gilberto me explicou que naquela cidade pegaríamos o único jogador paulista da seleção brasileira, o Araken Patusca. A seleção só tinha jogadores cariocas, pois os dirigentes de São Paulo, como não foram chamados para compor a delegação, não aceitaram ceder seus jogadores. Só o Araken, que estava sem clube, é que pôde ir.

Meu amigo achava aquilo uma pena, pois o goleiro Athié e o atacante Feitiço certamente seriam titulares. E que um tal de Friedenreich, que também não pôde ir por causa da birra dos paulistas, mesmo com 38 anos, ainda era o melhor jogador do mundo. Será que eles nunca ouviram falar do francês Manoel Anatol? Bem, também não seria dessa vez, o clube dele não o liberou para integrar a seleção francesa.

Ali no porto de Santos, o Gilberto também comprou um cacho de bananas. Deve ter custado uma fortuna.

Finalmente, no dia 4 de julho chegamos a Montevidéu. Dez mil uruguaios nos esperavam no porto. Que festa!

Pontapé inicial – Só treze equipes aceitaram o convite para participar da Copa. Assim formaram um grupo com quatro equipes e três grupos com apenas três seleções. Só os primeiros colocados de cada grupo passariam às semifinais.

O jogo de estréia foi França x México. E meu amigo Gilberto atuou como um dos bandeirinhas no Estádio Pocitos. Meu colega e compatriota Christophe Henry foi o outro bandeira.

Eu preferi ir ao Parque Central assistir a estréia da minha Bélgica contra os Estados Unidos que diziam que não jogava nada. Perdemos de 3×0.

Meu amigo Gilberto me disse que no jogo que ele auxiliou nevava muito quando o francês Lucien Laurent fez o primeiro gol da história das Copas do Mundo. Foi um belo voleio. Ele nem sabia que estava entrando para a história. Nesse mesmo jogo o goleiro francês Alex Thépot saiu machucado, como não existiam substituições, o jogador de linha Augustin Chantrel foi pro gol e a França terminou o jogo com dez jogadores, mesmo assim venceram os mexicanos por 4×1.

No dia seguinte, eu e Gilberto fomos ao Parque Central assistir o jogo entre Iugoslávia 2×1 Brasil. Os brasileiros pareciam intimidados. Talvez por causa do frio intenso. Só Fausto e Preguinho mostravam alguma atitude. Aliás, o Preguinho fez o primeiro gol do Brasil em Copas do Mundo. O Gilberto me contou que o garoto era campeão em oito esportes: futebol, natação, remo, polo aquático, saltos ornamentais, atletismo, basquete e vôlei. Ah, que inveja os juízes têm dos atletas… Saímos dali correndo pouco antes do fim do jogo porque eu ía estrear como bandeirinha no Estádio Pocitos no jogo Romênia x Peru. Foi 3×1 pros romenos.

Meu amigo Gilberto estreou apitando no Parque Central a partida Argentina x França, no dia seguinte. 1×0 para os argentinos e vi que os bandeirinhas que o ajudaram eram o boliviano Ulises Saucedo e o romeno Constantin Radulescu. Estranho, eles também eram técnicos dos seus países. Será que um dia eu poderei ser treinador da Bélgica?

Antes de pensar em ensinar eu tinha que cuidar das regras e lá fui eu no outro dia ser bandeirinha de novo no Parque Central. O jogo era Chile x México. Meu amigo Christophe Henry apitou esse jogo e os chilenos venceram por 3×0.

Dois dias depois eu estreei apitando naquela Copa: Uruguai x Peru. Coloquei minhas calças bufantes, minhas meias longas, uma camisa social branca, minha gravata e, é claro, meu paletó. Elegância é fundamental, afinal era a inauguração do Estádio Centenário. Eu notei que o Castro que fez o único gol do jogo não tinha a mão direita. Depois vim saber que ele fora marceneiro e perdeu a mão num acidente com uma serra elétrica quando trabalhava aos 13 anos de idade. Nem posso imaginar a dor. Ele foi apelidado de Divino Manco. Meu amigo Christophe foi meu auxiliar na bandeira nesse dia.

Um dia depois fui ver meu amigo Gilberto como bandeirinha de Chile 1×0 França. Pena! Os franceses não tinham mais chance, mas o Thépot recuperado fez uma linda defesa numa cobrança de pênalti. A primeira em uma Copa do Mundo.

Mais um dia se passou no calendário e era hora de vermos tanto minha Bélgica como o Brasil do Gilberto se despedirem. No mesmo dia, no mesmo estádio. Primeiro foi o Brasil que até estava jogando mais solto e ganhou de 4×0 da Bolívia, Moderato e Preguinho marcaram dois gols cada. Mesmo assim, como a Iugoslávia havia vencido a Bolívia três dias antes, o Brasil estava fora do campeonato e só cumpria tabela. Depois veio minha Bélgica na mesma situação, como os Estados Unidos ganharam do Paraguai três dias antes, só cumpriríamos o compromisso contra os paraguaios, mas diferente do Brasil nem conseguimos vencer e a seleção belga assim como a Bolívia do Ulises foi eliminada sem marcar nem um golzinho. Gilberto e eu começamos a desconfiar que essa coisa de Copa não era pra gente.

Não dava nem pra descansar muito, quanto mais lamentar. O Gilberto apitou no dia seguinte o jogo decisivo que classificou o Uruguai pra próxima fase, vencendo a Romênia por 4×0 e logo no outro dia eu fui escalado como juiz no jogo entre argentinos e chilenos, junto com o Christophe na bandeira. Quem vencesse iria à semifinal. Desconfio que estes países não se dão muito bem, porque houve uma tremenda briga entre os atletas. Normalmente eu expulsaria um monte de cada lado, mas as autoridades pediram e fui condescendente. A Argentina venceu por 3×1 e foi à semifinal contra os Estados Unidos.

Também apitei este jogo. Logo aos dez minutos, um norte-americano se contundiu e o time ficou só com dez jogadores. Aí foi um passeio: 6×1 para a Argentina. Nesta partida houve um fato curioso: Depois que marquei uma falta, o jogador norte-americano ficou com o lábio sangrando e o técnico dele que também era médico (como tem gente que consegue fazer duas funções) entrou em campo para tirar satisfação. Ao chegar perto, intimidado pelos meus 1,90m, ele desistiu de brigar e apenas atirou sua maleta no chão com raiva. Todos os frascos se quebraram, inclusive um de clorofórmio. O sujeito desmaiou e teve de ser carregado pelos seus jogadores. Ou seja, o médico precisou de atendimento médico.

A outra semifinal foi um dia depois, entre Uruguai x Iugoslávia. O juiz foi o Gilberto e o placar também foi 6×1. A decisão seria entre Uruguai x Argentina. Um jogo de sair faísca como o que eu assisti nas Olimpíadas, em Amsterdam há dois anos. Desejo sorte pro Gilberto porque o Sr. Jules Rimet disse que ele é o favorito pra apitar a decisão.

Fui então passear em Buenos Aires e lá recebi a notícia que o Gilberto precisou voltar às pressas para o Brasil e eu tinha sido escolhido para apitar a final e deveria retornar imediatamente. O que eu fiz? Voltei na mesma hora? Não mesmo!

Aquele seria um jogo de vida ou morte. E a morte poderia ser minha. Então fiz três exigências para entrar na arena:

1 – Queria um seguro de vida para mim e para os meus dois assistentes. O Saucedo, técnico e juiz boliviano e meu compatriota Christophe.

2 – O navio Duílio, que partiria às 15h00 para a Europa, deveria esperar por mim e por Christophe, pois o jogo só terminaria às 17h00 e nós iríamos voltar imediatamente.

3 – Uma escolta policial de cem homens deveria nos levar até o porto depois do jogo.

Só quando eles me garantiram que as três exigências seriam cumpridas é que atravessei o Rio da Prata de volta para o Uruguai.

O barco estava repleto de argentinos. Foi uma invasão. Muitas armas foram apreendidas na Alfândega e houve várias brigas entre as torcidas nas praças de Montevidéu.

Essa América do Sul parece cenário de faroeste e viver aqui está muito perigoso. Ainda mais para um juiz de futebol.

Afinal, a final – Quando entrei no Centenário, meu queixo quase caiu. Nunca tinha visto um estádio tão cheio. Pensei que ele se chamava Centenário porque o país festejava o centenário de sua Constituição. Mas acho que era porque cabiam cem mil pessoas ali dentro. Me disseram que eram oitenta mil, mas tenho minhas dúvidas.

Antes de apitar o início do jogo já surgiu o primeiro problema: Os argentinos queriam a bola argentina, os uruguaios só aceitavam a bola uruguaia. Apelei para a diplomacia. Usaríamos uma bola no primeiro tempo e a outra no segundo e fiz um sorteio pra ver quem começaria. Começamos com a bola argentina Tiento.

Começou a partida. Os uruguaios marcaram logo aos doze minutos, com Dorado. Oito minutos depois, Peucelle empatou. E aos trinta e sete minutos Stábile, o artilheiro do campeonato, virou o jogo: Argentina 2×1. Neste momento ouvimos um tiro na arquibancada. Disseram que foi uma comemoração com rojões, mas fiquei assustado do mesmo jeito.

Na etapa final, os uruguaios voltaram enlouquecidos com a sua bola favorita, a T-Model e logo aos doze minutos igualaram o placar, com Cea. Aos vinte e três minutos, num chute de fora da área, o Iriarte revirou o placar: 3×2 para o Uruguai.

Foi a vez dos argentinos atacarem. Houve uma chuva de cruzamentos, chutes batendo nos beques, bolas na trave e o guardião Ballestrero fazendo milagres.

O empate parecia inevitável. Mas, num contra-ataque, o pequeno Divino Manco Castro subiu como se tivesse molas nos pés e deu uma cabeçada certeira: 4×2.

Os argentinos alegaram toque de mão, mas como Manco era maneta, fiz-me de surdo.

Alguns minutos depois soprei o apito final. O Uruguai era o primeiro campeão do mundo. A festa no estádio foi imensa. Mas nem fiquei para ver. Saí correndo para o porto com o Christophe. Para nossa surpresa, não havia cem policias para nossa escolta. Aliás, não havia nem um mísero soldado raso. Apenas um segurança civil. Mesmo assim, chegamos sãos e salvos.

– Já podemos partir – Falei ao capitão.

– Não podemos, não – ele me respondeu. – O nevoeiro está muito forte. Só amanhã de manhã. Teremos de passar a noite ancorados aqui.

– Teremos que ficar aqui? E se uma horda de argentinos atacar o navio? – Christophe perguntou.

Ele deu de ombros. E nós dois passamos a noite escondidos no camarote.

Graças a Deus não aconteceu nada e partimos logo pela manhã, mas como apitar é perigoso!

* José Roberto Torero é autor de 37 livros, entre eles O Chalaça (Prêmio Jabuti, 1995, romance), Papis et Circenses (Prêmio Paraná de Literatura, contos, 2012), Pequenos Amores (Prêmio Jabuti, contos, 2002), Futebologia e Zé Cabala e Outros Filósofos do Futebol. Foi colunista na Folha de São Paulo de 1998 a 2012, e do Jornal da Tarde de 1994 a 1998. Como roteirista, escreveu a série FDP para a HBO, dez roteiros de longas-metragens (entre eles Pelé Eterno) e dez roteiros de curtas-metragens, entre eles Uma História de Futebol, que concorreu ao Oscar em 2002.

**Marcello Pereira Borghí, sobre a fonte.


FONTE:

uol – copa brasileira de letras